Fernando Pereira foi um dos nossos convidados da Semana da Leitura. Amavelmente aceitou participar em dois momentos de conversa com alunos do 2º Ciclo e do Ensino Secundário. Acedeu também a partilhar um texto em que alude ao encontro com os alunos, publicado na edição de 23 de abril do jornal O Almonda e que transcrevemos na íntegra.
O gato
Fui falar a alunos do secundário sobre a leitura e a escrita. Olharam-me como se eu fosse dum planeta diferente e eu, ao olhar para eles, alunos e alunas, recordei-me dos tempos distantes em que fui, tal como espero que eles sejam, uma pessoa cheia de esperança e otimismo, de firmes convicções e sonhos por concretizar. A vida escolheu depois o seu próprio caminho, sabendo que, mais que sorte ou azar, somos nós que influenciamos o nosso destino. Tentei estimular o gosto pela leitura e pela escrita mas, num mundo tão distante dos meus tempos de adolescente, em que a tecnologia traz a cada momento novas possibilidade e conhecimentos a um ritmo alucinante e difícil de acompanhar, não sei se despertei, ao menos, a sua curiosidade. A vontade de embarcar na viagem maravilhosa da leitura de um livro ou até, mais penoso, mas mais compensador ainda, a escrita dum texto que seja lido pelos outros numa tentativa de mostrar como interpretamos a realidade. O relógio correu depressa entre a conversa e leitura. Foi neste tempo estranho e cauteloso em que, sob a máscara, retomamos aos poucos a vida normal. Depois fui beber um café ao balcão, um prazer corriqueiro negado durante muitos meses. Perguntei ao empregado, um rapaz presumivelmente indiano, se já tinha tido muitos clientes: que não, que embora manhã fosse adiantada, era primeiro café que servia. Tornei à rua a pensar na instabilidade destes dias. Nos muitos anos que me separam da malta jovem. Na insegurança do futuro. No receio de que daqui a uns tempos tornemos a estar confinados. Nos desafios e oportunidades do presente. Na precariedade da economia. Na indissolúvel ligação entre todos os cidadão do mundo por uma rede de conhecimentos mas também por um vírus ameaçador. Na magia de ler e da escrever que, espero, se mantenha nas gerações mais novas. Perdido nestas deambulações o meu olhar é subitamente atraído para uma varanda, dois ou três andares lá bem acima. Todos os pensamentos são interrompidos por um movimento brusco. Um gato corre do beirado dum telhado para uma varanda sem hesitação ou medo de perder uma das suas sete vidas. Depois, perfeito funambulista, sem vertigens, equilibra-se magistralmente no topo do gradeamento e, com passo decididos e elásticos, como só os gatos têm, cai não cai, transpõe a distância de alguns metros e salta para o interior da varanda onde, atrás das grades, uma gata, simulando indiferença, espera por ele, espreguiçando-se como uma odalisca num canapé.
